CGU aponta desvios em doações da Codevasf, estatal do “orçamento secreto”; vereador ficou com trator
Relatório investigou movimentações até o meio do ano passado por Superintendência Regional sediada em Bom Jesus da Lapa, na Bahia
Um relatório produzido pela Controladoria-Geral da União (CGU) apontou indícios de irregularidades em doações feitas pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) a entidades da sociedade civil.
O documento revela que um trator que deveria servir a uma associação no interior da Bahia foi encontrado na casa de um vereador, que preside a organização. No mesmo estado, uma caixa d’água foi parar num município vizinho ao da associação à qual havia sido repassada. A estatal é controlada por indicados do Centrão.
O relatório investigou doações realizadas até o meio do ano passado pela 2ª Superintendência Regional da Codevasf, sediada em Bom Jesus da Lapa (BA). Da amostra de nove casos apurados pela CGU, em dois deles o equipamento não estava sob a guarda dos beneficiários.
De acordo com a Controladoria, a fiscalização mostrou que “a ausência de elementos de controle pela Codevasf leva a existência de condições para que sejam materializados os riscos de uso ineficiente dos recursos do programa, de desvio de finalidade e até mesmo de que particulares eventualmente se apropriem dos objetos das doações”, afirmou.
Os fiscais identificaram que um caminhão basculante de dez metros cúbicos, um trator e reservatórios de água que deveriam ir para a Associação de Pequenos Produtores Rurais de Cubículo estavam guardados na propriedade da família do vereador de Cocos (BA) Gregson Luz (União), que comanda a associação. O parlamentar alega que os equipamentos foram levados para o local por segurança, já que lá haveria funcionários e câmeras para guardá-los.
No outro episódio em que o equipamento não foi encontrado sob a guarda dos beneficiários, uma pá carregadeira sequer estava na cidade para onde havia sido destinada pela Codevasf. De acordo com a CGU, a doação foi feita para a Associação da Comunidade de São João, que fica no município de Santa Maria da Vitória (BA). O equipamento, entretanto, foi encontrado pelos fiscais em uma propriedade privada em São Félix do Coribe, cidade vizinha. De acordo com o representante da entidade entrevistado pela CGU, o equipamento era compartilhado com terceiros, para beneficiar mais cidadãos na região.
Gregson Luz afirmou à CGU que cederia o caminhão para seis comunidades vizinhas, “mediante cobrança de aluguel e taxas para uso”, para arcar com os custos do veículo. A Controladoria pontuou que a Codevasf não fiscaliza tais práticas e que elas podem configurar “vantagens indevidas”.
“A cobrança de aluguéis e taxas, sem fiscalização pela Codevasf, nem mesmo necessidade de prestação de contas pelo beneficiário, acarreta do risco de aferição de vantagens indevidas com a utilização do equipamento público doado”, aponta o relatório.
Já em Campo Formoso, também na Bahia, quatro das associações que foram agraciadas com doações da Codevasf eram presididas por assessores parlamentares da Câmara Municipal da cidade. Um cruzamento feito pelo GLOBO entre a data de abertura das agremiações e a assinatura dos termos de convênio com a estatal aponta que 98 das 3.408 doações feitas pela Codevasf em 2020 e 2021 foram direcionadas para sociedades criadas menos de um ano antes. E 29 delas com menos de cem dias.
Como O GLOBO revelou no final do ano passado, o número de doações feitas pela Codevasf disparou durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro: eram 1.105 em 2018, ano anterior à chegada dele ao Palácio do Planalto, e foram 3.408 em 2021, no meio do mandato.
Orçamento secreto
A estatal pode fazer doações a prefeituras e governos estaduais, mas também para associações comunitárias ou de produtores. Ao longo da governo anterior, a Codevasf foi abastecida em grande medida por recursos do chamado orçamento secreto, por meio do qual parlamentares destinavam verbas da União sem precisar se identificar. O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou o instrumento inconstitucional e vetou a modalidade de distribuição.
A Codevasf afirma que as doações são de “interesse social” e feitas com “análises de adequação técnica, conformidade legal e conveniência socioeconômica.” Sobre os equipamentos encontrados em endereços diferentes dos beneficiários, a estatal alegou que isso visa à “segurança do equipamento e a redução de custos de vigilância”. Diz ainda que cabe a cada entidade deliberar sobre a possibilidade de cobrança pela cessão dos bens.